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DESMISTIFICANDO A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA SUPERVENIENTE

publicado em 12/02/2025 15:51

Fonte: Revista Opinião Jurídica - 12ª edição

A alienação fiduciária em garantia é objeto de inúmeros debates e desafios em nosso meio jurídico imobiliário, por diversos motivos, mas em especial pela redação complexa da Lei Federal nº 9.514/97, pela aplicação nas mais diversas estruturas imobiliárias.

A prática jurídica nos mostra que a alienação fiduciária é, em verdade, limitada apenas pela criatividade dos operadores do direito. O desenvolvimento do instituto clamava por uma atualização legislativa que trouxesse segurança jurídica para as novidades que vinham sendo discutidas, questionadas ou observadas.

Em um contexto maior de incentivo à economia brasileira mediante atualização do sistema de garantias, a Lei Federal nº 14.711/2023 – mais conhecida como “Marco Legal das Garantias” – modernizou a Lei Federal nº 9.514/97, endereçou algumas dessas dúvidas (mas criou novas) e introduziu novidades. Dentre aqueles novos conceitos que foram recepcionados pelo legislador, encontra-se a figura da alienação fiduciária da propriedade superveniente, ou simplesmente alienação fiduciária superveniente, que passamos a desmistificar.

A constituição de garantias sucessivas não é nova. Recorda-se, por exemplo, que hipotecas sucessivas sobre um mesmo bem são permitidas desde o Código Civil de 1916 (art. 812), sendo reproduzida no Código Civil de 2002 (art. 1.476). Sem dúvidas, trata-se de importante mecanismo de oferta de garantia, especialmente diante de eventual stress na oferta de crédito ou de restrição patrimonial do tomador, maximizando ao máximo a disponibilidade do bem, permitindo que o mesmo imóvel garanta (ou venha a garantir) inúmeras operações financeiras, além da proteção que este tipo de garantia real e privilegiada assegura ao credor.

Como se sabe, por meio da alienação fiduciária em garantia, há a transferência da propriedade resolúvel do bem para o credor, de forma que o devedor passa a ser apenas titular de um direito aquisitivo de retomar a propriedade quando da quitação da dívida, o que não significa nem se confunde com um direito de propriedade futuro, que não existe.

A ideia de constituição de garantia real a non domino, ou seja, a outorga de uma coisa em garantia por quem não é proprietário já encontrava fundamento no Código Civil e na Lei de Registros Públicos.

Nos termos dos artigos 1.361, §3º e 1.420, §1º do Código Civil¹, quem não é proprietário pode onerar um bem, contudo tal garantia apenas se tornará eficaz quando o outorgante se tornar proprietário.

Veja-se, portanto, que a alienação fiduciária superveniente não é assunto novo ou desconhecido, mas apenas ganhou um nome próprio que pode trazer um certo tom de complexidade à matéria. Conforme a redação prevista no Projeto de Lei nº 4.188/21 (que deu origem à Lei Federal nº 14.711/2023), nada mais é do que a “alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente.” Ou ainda, alienação fiduciária condicionada.

Ademais, como típico direito real, a constituição da alienação fiduciária de bem imóvel depende do registro na matrícula do imóvel. O artigo 167, I, 29 da Lei Federal nº 6.015/73² permite a venda condicionada. Como quem pode o mais, pode o menos, sendo autorizada alienação condicionada da propriedade, pode-se afirmar que já era permitida também a alienação fiduciária condicionada da propriedade.

Neste contexto, Mauro Antônio Rocha³ e Melhim Chalhub⁴, anteriormente à Lei Federal nº 14.711/2023, já defendiam a legalidade tanto da celebração quanto do registro da alienação fiduciária superveniente. Da mesma maneira, foi a tese defendida ainda em 2011 na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal⁵.

Ou seja, trata-se de negócio jurídico existente e váli- do, apto para registro no Cartório de Registro de Imóveis, e que apenas será eficaz automaticamente quando da superação da condição suspensiva consubstanciada na re- tomada da propriedade plena pelo fiduciante mediante pagamento da dívida garantida pela alienação fiduciária anterior e consequente averbação do termo de quitação e cancelamento do registro da alienação fiduciária anterior emitido pelo credor fiduciário anterior.

Em que pese o sólido arcabouço legal e doutrinário, as dificuldades se mostravam intransponíveis no mundo prático. Afinal, quando do ingresso do título no Cartório de Registro de Imóveis, a qualificação pelo Oficial restava sempre negativa, sob ao argumento de que inexistia dispositivo legal expresso autorizativo do pretendido registro.

A relutância dos Oficiais de Registro de Imóveis foi acolhida pela Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao julgar dúvida sobre o tema.6

Diante de tamanha resistência, tornou-se inadiável a inserção do exigido dispositivo legal expresso autorizativo do registro da alienação fiduciária superveniente, para que enfim tal instituto pudesse ser utilizado em todo o seu potencial. Para tanto, com a Lei Federal no 14.711/2023 introduziu os parágrafos 3o, 4o, 5o e 10 do artigo 22 da Lei Federal no 9.514/977.

Dissipou-se, então, qualquer dúvida a respeito do registro da alienação fiduciária superveniente desde a data de sua celebração.

A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acolheu a novidade legislativa, mediante importante voto do Corregedor Geral Francisco Loureiro, nos autos da apelação cível no 1000125-58.2023.8.26.0126.8

Neste contexto, não há qualquer dúvida acerca da possibilidade não só da celebração, mas também do registro da alienação fiduciária superveniente. A rigor, por- tanto, foi endereçada a principal insegurança que pesava sobre o assunto.

Não há limites para a constituição da alienação fiduciária superveniente, podendo haver infinitas alienações fiduciárias supervenientes sucessivas, que obedecerão a ordem de preferência cronológica, à luz do princípio da anterioridade. Deste modo, a alienação fiduciária superveniente registrada antes terá preferência sobre a subsequente e assim sucessivamente.

Ainda, deve-se ter cuidado a respeito da eficácia e da produção de efeitos da alienação fiduciária superveniente. De fato, a alienação fiduciária superveniente não é eficaz enquanto não superada sua condição suspensiva e, portanto, não afeta nem atinge negativamente a alienação fiduciária precedente e seu credor.

Assim, em caso de inadimplemento do fiduciante da dívida garantida pela alienação fiduciária supervenien- te, o credor fiduciário não poderá executá-la. Não existe alienação fiduciária de segundo grau, eis que a alienação fiduciária original retira da esfera patrimonial do fidu- ciante a propriedade plena sobre o bem, de forma que não há como o devedor alienar fiduciariamente um di- reito que já não mais detém.

A alienação fiduciária superveniente produz pelo menos dois relevantes efeitos após registrada:

(a) o do art. 22, §4o, da Lei Federal no 9.514/97: em caso de inadimplemento da dívida garantida pela alienação fiduciária precedente e execução pelo seu credor fiduciário, o credor fiduciário da alie- nação fiduciária superveniente poderá aproveitar o saldo, se houver, para satisfazer seu próprio cré- dito, observadas as demais regras de preferência de credores com garantia real; e

(b) o do art. 22, §10, da Lei Federal no 9.514/97: dívida garantida por alienação fiduciária super- veniente é extraconcursal nos termos do art. 49, §3o, da Lei Federal no 11.101/20059, de forma que, em caso de recuperação judicial do devedor, o credor fiduciário da alienação fiduciária superve- niente não se sujeita ao procedimento da recuperação judicial.

Contudo, nas hipóteses em que (i) o valor do imóvel é insuficiente para satisfazer o crédito da alienação fiduciária precedente, ou (ii) o valor do imóvel é sufi- ciente para satisfazer o crédito da alienação fiduciária precedente, mas insuficiente para satisfazer o crédito da alienação fiduciária superveniente ou (iii) não haver arrematantes e consequente consolidação do bem no patrimônio do credor fiduciário precedente, o objeto da alienação fiduciária superveniente estará perdido e o credor fiduciário superveniente deverá executar outras garantias, se contratadas, ou cobrar a dívida em proces- so judicial autônomo.

Assim, ainda que ineficaz, a alienação fiduciária da propriedade superveniente produz relevantes efeitos e benefícios para o credor superveniente, contribuindo po- sitivamente para sistema de garantias brasileiro. Não obs- tante, por se tratar de uma garantia subordinada, o credor superveniente deverá estar atento ao valor do imóvel já alienado fiduciariamente vis-à-vis o da dívida em aberto.


 

  1. 1.361, §3º. A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.
    1.420, §1º. A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono.

  2. Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos I - o registro: (...) 29) da compra e venda pura e da condicional.

  3. “[podem as partes] atuando no campo da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, convencionarem mútuos ou outros negócios financeiros ou comerciais que se completem com garantia fiduciária cujo registro - imediato - terá efeito meramente assecuratório, condicionada a efetiva constituição ao cancelamento futuro de garantia anteriormente registrada.” (ROCHA, Mauro Antônio. Alienação Fiduciária de bem imóvel - Da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. P. 115.)

  4. “a constituição dessa espécie de garantia não tem por objeto o direito aquisitivo que se encontra no patrimônio do devedor-fiduciante, mas, sim, o direito futuro de propriedade do qual o fiduciante se tornará titular quando implementada a condição suspensiva (pagamento); disso resulta, obviamente, que a eficácia da garantia (nova) fica subordinada ao implemento dessa condição. Não se confunda a alienação fiduciária da propriedade superveniente com alienação fiduciária em segundo grau, que é inadmissível.” (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária. São Paulo: Forense, 2023. P. 116.)

  5. Enunciado 506: Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc.

  6. Processo nº 1111191-68.2016.8.26.0100. 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. DJe em 24.01.2017.

  7. “§3o. A alienação fiduciária da propriedade superveniente, adquirida pelo fiduciante, é suscetível de registro no registro de imóveis desde a data de sua celebração, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída.
    §4o. Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da ga- rantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias.
    §5o. O credor fiduciário que pagar a dívida do devedor fiduciante comum ficará sub-rogado no crédito e na propriedade fiduciária em garantia, nos termos do inciso I do caput do art. 346 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
    §10. O disposto no § 3o do art. 49 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, beneficia todos os credores fiduciários, mesmo aqueles decorrentes da alienação fiduciária da propriedade superveniente.”

  8. A questão da propriedade fiduciária superveniente não se encontra no plano da validade do negócio, mas sim no plano da eficácia. A garantia é válida, apenas sua eficácia se encontra subordinada ao implemento de condição suspensiva, qual seja, a extinção da primeira propriedade fiduciária resolúvel. (...) Não há, aqui, promessa de outorga de garantia, nem de garantia sobre coisa alheia, mas mera garantia ineficaz, que ganha, de modo automático e indepen- dentemente de qualquer outra emissão de vontade das partes, plenos efeitos se a coisa for adquirida pelo outorgante. A alteração legislativa autorizando o ingresso do título no fólio real apenas positivou de modo explícito situação que já se encontrava no regime geral de garantias do Código Civil.” (TJSP. Apela- ção Cível no 1000125-58.2023.8.26.0126. Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo. DJe de 22.02.2024)

  9. “Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

por

Marcelo Terra

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