Na mídia
Fonte: Estadão
Inúmeros avanços ocorreram, mas a mulher advogada ainda enfrenta obstáculos que impactam nos seus ganhos, ascensão e reconhecimento
Mesmo a advocacia desempenhando um papel fundamental na construção de instituições democráticas e livres em um Estado de Direito, ainda temos muito a fazer para garantir um espaço seguro e de igualdade de oportunidades às mulheres advogadas.
Nesse contexto, em celebração ao Dia da Mulher Advogada (15 de dezembro), cumpri-nos uma reflexão não apenas sobre os direitos conquistados, mas também sobre os inúmeros desafios ainda suportados pelas mulheres no exercício da advocacia.
A feminização da advocacia é evidente no Brasil a partir dos anos 1980. Dados do Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira, realizado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), demonstram que o número de advogadas mulheres inscritas na OAB superou o número de homens, rompendo, finalmente, a hegemonia masculina no exercício da profissão. Já o último Censo da Educação Superior mostrou que as mulheres são maioria entre os ingressantes em cursos de graduação em Direito.
Em 2016, a Lei 13.363 trouxe importantes alterações ao Código de Processo Civil e ao Estatuto de Advocacia no tocante aos direitos da mulher advogada, garantindo:
- às advogadas gestantes: o direito de entrada em tribunais sem serem submetidas a detectores de metais e aparelhos de raios X, bem como a reserva de vaga em garagens dos fóruns dos tribunais;
- às advogadas lactantes, adotantes ou que derem à luz: o acesso a creche, onde houver, ou a local adequado ao atendimento das necessidades do bebê;
- às gestantes, lactantes, adotantes ou que derem à luz: preferência na ordem das sustentações orais e das audiências a serem realizadas a cada dia;
- às adotantes ou que derem à luz: a suspensão de prazos processuais quando forem as únicas patronas da causa.
No caso das normas processuais, o texto prevê a suspensão dos prazos processuais por 30 dias para as advogadas que derem à luz ou adotarem uma criança, desde que haja notificação por escrito ao cliente e que elas sejam as únicas advogadas a responderem pela causa.
A lei recebeu o apelido de Julia Matos, nome da filha da ministra Daniela Teixeira que, quando advogada, sofreu um parto prematuro após ter seu pedido de preferência para realização de sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça negado e esperar a manhã inteira e metade da tarde para sustentar.
No âmbito da OAB notamos avanço no incentivo à representatividade da advocacia feminina. A Resolução 5/2020, aprovada pelo Conselho Federal da OAB, que altera o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, garante a participação paritária de gênero nos cargos eletivos de direção e gestão das seccionais, subseccionais, das Caixas de Assistência e do Conselho Federal da OAB.
Em razão dessa resolução, nas eleições da OAB do ano de 2021, pela primeira vez na História, das 27 seccionais, foram eleitas cinco lideranças femininas para presidência nos Estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso e Bahia. Já em 2024, para o próximo triênio, seis seccionais escolheram advogadas para a presidência, quais sejam o Rio de Janeiro, Mato Grosso, Pernambuco, Bahia, Ceará e Espírito Santo.
Não por coincidência, muito em razão da liderança e representatividade feminina nesses cargos de direção e gestão, nos últimos anos, vimos a proliferação de políticas específicas instituídas pelas seccionais da OAB.
A seccional da OAB de São Paulo instituiu, no ano de 2024, o selo “Promove Mulheres Advogadas”, com a certificação dos escritórios de advocacia do Estado de São Paulo que promovem a participação e a permanência de advogadas mulheres em seus quadros funcionais e diretivos. A seccional da OAB de Pernambuco, também neste ano, criou o selo “Amigo da Mulher Advogada”, para reconhecer e certificar os escritórios de advocacia de Pernambuco que adotarem, permanentemente, práticas educativas e de promoção dos direitos das mulheres advogadas, além da prevenção aos diversos tipos de violência.
Outras iniciativas também ganharam destaque, como a criação da Ouvidoria das Mulheres Advogadas pelas Seccionais da OAB de São Paulo, Paraíba, Espírito Santo e Rio Grande do Sul, um canal de denúncias para casos de assédio contra as mulheres, visando a auxiliar no combate à violência de gênero.
A Seccional da OAB de Pernambuco editou a Resolução 97/2023, que instituiu o Plano Estadual de Valorização da Mulher Advogada (Pema), com objetivo de densificar as “pautas de apoio às mulheres advogadas na sociedade, tendo como eixos a equidade, a participação das mulheres nos espaços de poder, a articulação com demais poderes e sociedade civil, a proteção efetiva da mulher e o combate às violências”. No mesmo sentido, a seccional de Alagoas (OAB-AL) lançou iniciativa semelhante, com a criação do Plano Estadual de Valorização da Mulher Advogada, que, dentre as diretrizes, prevê a formação contínua das mulheres advogadas, garantia das prerrogativas das mulheres advogada e apoio no exercício da advocacia.
Para as advogadas lactantes, as Seccionais da OAB do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraíba e São Paulo criaram espaços destinados exclusivamente à amamentação nos fóruns, com privacidade e tranquilidade necessária para estimular o aleitamento materno, sem prejuízo do exercício da profissão.
Iniciativas como essas citadas, exemplificativamente, ajudam a lançar luz sobre as conquistas nesse longo caminho que contribuem significativamente para a promoção da igualdade de gênero na advocacia.
Nada obstante, a mulher advogada ainda enfrenta obstáculos que impactam nos seus ganhos, ascensão e reconhecimento na estrutura laboral.
Segundo dados da pesquisa realizada pela Women in Law Mentoring Brazil, divulgada em 2019, as mulheres são minoria nos cargos de liderança pois, apesar de preencherem 57% do setor, ainda representam apenas 34,4% dos sócios de capital. Equidade de gênero no setor de advocacia é um verdadeiro desafio que requer ações específicas.
A inovadora pesquisa da professora Patrícia Tuma Martins Bertolin, transformada no livro Mulheres na Advocacia: Padrões Masculinos de Carreira ou Teto de Vidro, atribui o baixo porcentual de mulheres em posição de liderança ao chamado “teto de vidro”, uma barreira que impede as mulheres de ultrapassarem determinado patamar da hierarquia organizacional. Segundo Patrícia, esse teto de vidro está fortemente associado à maternidade, à culpa e à falta de apoio familiar.
Isso porque a mulher advogada enfrenta um mercado de trabalho que foi historicamente constituído a partir da lógica masculina, ou seja, os perfis do segmento jurídico e de muitas outras áreas foram estabelecidos a partir de noções da rotina dos homens e de seus critérios.
Ainda, conforme dados do 1.º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (Perfil ADV), divulgado em abril de 2024, a média de tempo de inscrição na OAB é menor entre as mulheres, com a média de 11 anos, em comparação com 14 anos entre os homens. Tais dados sugerem que a inclusão do público feminino nesse campo profissional cresceu somente recentemente no Brasil e que, por inúmeras razões, acabam deixando a profissão antes dos homens.
Quanto à área de atuação, essa mesma pesquisa demostra que as diferenças mais significativas por gênero aparecem na área de família e sucessões. Entre as mulheres, essa área é indicada como principal por 18% de advogadas e apenas 9% de advogados. Também se destaca o Direito Previdenciário, com 13% entre as mulheres e 9% entre os homens. Demonstrando que ainda são extremamente nichadas as áreas de atuação das mulheres advogadas.
Outro dado preocupante é que, até a renda de cinco salários mínimos, o porcentual de mulheres é superior ao de homens, situação que se inverte em rendas superiores a cinco salários mínimos, em que os homens correspondem ao maior porcentual. A indicar que a mulher advogada ainda recebe menos que o homem advogado, a impactar na sua qualificação e crescimento profissional.
Dessa forma, ainda que as mulheres advogadas sejam a maioria no ensino superior, e inscritas nos quadros da OAB, ainda é fundamental a promoção da igualdade de gênero no setor jurídico, tais como a criação de programas de mentorias, a implementação de políticas de igualdade salarial, a promoção da diversidade nas instituições jurídicas e a valorização do papel das mulheres na carreira jurídica.
Buscamos aqui traçar um cenário da advocacia feminina o mais realista possível. Inúmeros avanços ocorreram, mas ainda é necessário enfrentarmos insistentemente os entraves que nos são impostos, exclusivamente em razão do gênero.
Desse modo, a repetição “mulher advogada” não é pleonástica, mas sim um recurso linguístico que representa a importância dessa luta para ascensão e reconhecimento das mulheres na advocacia.