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Na mídia

Os Yanomami e a prevenção à lavagem de dinheiro

publicado em 15/03/2023 11:29

Fonte: Estadão

Por Pedro Simões

A imensa operação de garimpo ilegal em terras Yanomami não pegou os brasileiros de surpresa. Contudo, o estado em que foram encontrados os membros da comunidade Yanomami no começo deste ano chocou tanto brasileiros como toda a comunidade internacional, num misto de péssimas condições de saúde e sociais causado tanto pelo garimpo como pela dissidia das autoridades públicas com relação a essa população vulnerável.

Nos vários debates que se seguiram – sobretudo à reportagem do Repórter Brasil cobrindo o caminho do ouro, que ia desde a exploração ilegal em terras Yanomami até o mercado de ouro e passava pela intermediação de diversas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs, empresas autorizadas a operar pelo Banco Central e fiscalizadas pela autarquia) –, uma figura muito debatida vem sendo a presunção de boa-fé do vendedor estabelecida na Lei Federal n.º 12.844/2013.

A lei, resultado de uma medida provisória convertida, versa prioritariamente sobre outros temas, mas recebeu um jabuti, um acréscimo de assunto diverso durante a tramitação nas casas legislativas. Esse acréscimo resultou no artigo 39 da referida lei, que afirma que a prova da regularidade da primeira aquisição de ouro produzido por regime de aproveitamento (incluído, aqui, o de lavra garimpeira) se comprova pela emissão de nota fiscal de aquisição por uma instituição autorizada pelo Banco Central a realizar a compra do ouro – uma DTVM.

O parágrafo 4.º da lei acrescenta: “Presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente quando as informações mencionadas neste artigo, prestadas pelo vendedor, estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro”. A lei vai além, e o artigo 40 disciplina o mercado secundário, dizendo que “a prova da regularidade da posse e do transporte de ouro para qualquer destino, após a primeira aquisição, será feita mediante a apresentação da respectiva nota fiscal”.

Essa bizarra disposição legal cria uma presunção de regularidade para fins de regulação da mineração que é ímpar em nosso ordenamento e serve de “cheque em branco” para que intermediários financeiros entrem na cadeia do ouro emitindo o primeiro processo de “formalização” desse recurso na economia.

Como a prova da licitude da origem depende unicamente de uma declaração, porém sem que haja um rever regulatório de averiguação das informações apresentadas pelo vendedor à DTVM, muito tem se falado no papel que essas instituições podem estar prestando para lavar o “ouro de sangue”, lembrando que muito dessa produção deriva de crimes cometidos diretamente contra a população indígena, além de crimes ambientais e de grilagem.

A conclusão que vem sendo circulada por parte dos analistas e comentaristas do assunto é de que esta presunção de boa-fé estipulada na lei serve de escudo para as DTVMs e impede a real apuração de sua origem, em especial por quem compra o ouro dessas instituições, como joalheiros. Essa conclusão nos coloca numa situação que choca com a tendência mundial de aumentar a responsabilidade dos agentes econômicos por sua cadeia de suprimentos, como vimos na Alemanha, país que recentemente formalizou em lei a obrigatoriedade de as empresas diligenciarem seus fornecedores para a garantia da preservação de direitos humanos.

O que se tem omitido dizer, porém, é que as DTVMs têm, sim, a obrigação de apurar informações da origem do ouro, não para fins de regulação da Agência Nacional de Mineração ou da Lei n.º 12.844/13, mas porque são pessoas obrigadas a ter controles de prevenção à lavagem de dinheiro, nos termos da Lei de Lavagem (Lei Federal n.º 9.613/98).

A Lei de Lavagem deixa claro que entidades financeiras, como as DTVM, são obrigadas a ter “políticas, procedimentos e controles internos” voltados à prevenção à lavagem de dinheiro.

Especificamente com relação às obrigações a que estão sujeitas as DTVMs, a norma aplicável é a Resolução Bacen n.º 3.978, editada em 2020 e que estabeleceu o chamado regime de “abordagem baseada em risco” para fins de prevenção à lavagem. Isso significa, em primeiro lugar, que as DTVMs devem desenvolver uma minuciosa Avaliação Interna de Risco, a qual deve considerar o perfil de risco “das atividades exercidas pelos funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados” (art. 10, §1.º, IV).

A avaliação de riscos dos parceiros, para ser concreta e atender ao objetivo da norma, deve levar em consideração os procedimentos destinados a conhecer ditos parceiros, os quais são regulados nos artigos 56 e seguintes da circular. A obrigatoriedade desse procedimento decorre dos deveres que as DTVMs têm em face da Lei de Lavagem, e a “presunção de boa-fé” regulatória prevista na lei em nada afeta a extensão dessa tarefa que tem por objetivo a prevenção do crime de lavagem.

As DTVMs devem classificar cada parceiro pelos preceitos de risco de sua Avaliação Interna de Risco – conforme metodologia que deve estar estruturada em sua Política de Prevenção à Lavagem – e manter informações atualizadas sobre o parceiro e sobre a classificação de risco desse parceiro.

O mínimo que se pode esperar é que parceiros do segmento de mineração sejam classificados como risco mediano, uma vez que a própria Avaliação Nacional de Riscos (documento oficial de mapeamento de riscos de lavagem do governo federal) assim dispõe: “A vulnerabilidade ponderada do setor de metais preciosos, para fins de LD/FT no Brasil, foi classificada como média. No Brasil, embora o setor de comercialização de joias tenha regulação pelo Coaf, o setor de mineração ainda não é regulado para fins de PLD/FT em todas as etapas da cadeia de comercialização. Ademais, a vasta extensão do território explorável para ouro e pedras preciosas, as dificuldades inerentes na identificação e combate da mineração ilegal e o desconhecimento das obrigações de PLD/FT por parte da grande maioria dos integrantes do setor são fatores que corroboram para tal vulnerabilidade”.

Por isso, o que podemos esperar como evolução da matéria é uma separação do joio e do trigo. As DTVMs que anseiam por operar na legalidade devem ter sua Avaliação Interna de Risco a postos para uma supervisão do Banco Central, que pode (e deve) ocorrer a qualquer momento, e reforçar o monitoramento dos parceiros oriundos de atividades de lavra. Mais do que isso, todas as informações que têm de seus parceiros precisam ser revisitadas para que as instituições decidam se devem ou não realizar comunicações de operações e situações suspeitas ao Coaf, com base nos dados que vêm sendo revelados sobre o garimpo em terras Yanomamis.

As DTVMs que operavam com nível menor de formalização dos processos de prevenção à lavagem precisam se adequar imediatamente e revisitar o histórico de operações, porque a leniência numa situação como esta pode expor não apenas a companhia a multas milionárias, como também a seus administradores, que também estarão sujeitos a procedimentos criminais, em especial se não adotarem uma atitude colaborativa imediatamente.

A seriedade da regulação de prevenção à lavagem está sendo posta à prova agora, com este imenso escândalo de lavagem – estima-se que cerca de 229 toneladas de ouro de origem ilícita possa ter circulado pelo País entre 2015 e 2020 –, e o mercado certamente irá sentir os reflexos da repercussão global que o assunto ganhou. Afinal, ao fazerem parte da cadeia do ouro, a questão Yanomami também é de responsabilidade das DTVMs.

*

COORDENADOR DA EQUIPE DE PENAL EMPRESARIAL E COMPLIANCE DO ESCRITÓRIO DUARTE GARCIA, SERRA NETTO E TERRA, ESPECIALISTA EM REGULAÇÃO FINANCEIRA E CRIPTOATIVOS, TEM EXPERIÊNCIA NA ATUAÇÃO DE CASOS DE CRIMES FINANCEIROS E CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS, CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CRIMES TRIBUTÁRIOS E CONTRA O MEIO AMBIENTE

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