Na mídia
Fonte: Estadão
O dia 8 do mês de fevereiro tem particular e, talvez, inigualável importância para a trajetória da Corte Constitucional que, desde seu nascimento (em 1890), foi prometida à mais nobre tarefa de construir o sentido e preservar os valores sociais mais caros que se fizeram presentes nas constituições brasileiras.
Na trilha da imprecisa ideia de relativização da coisa julgada em matéria tributária, o STF muda seu rumo, historicamente reconhecido, para desacomodar um limite objetivo fincado no texto constitucional e do qual depende a própria solidez do Estado de Direito. Ver na raiz da coisa julgada o valor que o texto constitucional intransigentemente guarda desperta a desconcertante percepção da ameaça que ora se avizinha.
Ao prescrever que a Lei não prejudicará a coisa julgada (assim como o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, art. 5º, XXXVI) a Constituição fixa um limite à atuação do Estado. A decisão judicial, que se torna irrecorrível, está protegida de tudo e de todos, sendo certo que, se a própria Lei não lhe alcança, tampouco pode alcançá-la outra decisão judicial. E o regime processual da Ação Resciória (art. 966 do CPC) de modo algum se opõe à essa diretriz constitucional. Ao invés, confirma-a, preservando a integridade do processo que resultou na decisão judicial e assegurando a plena aplicação do direito material e do direito processual afeitos à demanda. A Ação Rescisória não mitiga, limita, a decisão judicial definitiva, porque funciona como remédio para extirpar o vício do processo, observando os parâmetros que o próprio regime processual fornece.
Embora sejam encontrados incontáveis estudos, sob diversas perspectivas, assim como uma vasta lista de decisões judiciais amparadas no conceito de coisa julgada, há uma noção simples que dela é indissociável: fim, término, encerramento. O litígio tem fim, e, por isso mesmo, fazer cessar a incerteza que lhe deu origem, devolvendo estabilidade às relações jurídicas organicamente sustentadas por direitos e obrigações. O processo judicial, como meio de solução de conflitos, faz sentido porque seu fim é certo. Aí reside uma certeza que conforta os litigantes perturbados pela dúvida acerca de seu direito: uma decisão judicial se tornará definitiva, atribuindo às partes em disputa o que lhes cabe e lhes devolvendo a tranquilidade. Ainda que traga descontentamento, o fim do litígio resgata o estado de equilíbrio, que nunca convive com a dúvida ou a indefinição. E como um selo que estampa o fim do processo, inviolável, a coisa julgada fulmina a incerteza, para sempre.
A razão de ser da coisa julgada, obviamente, ficou marginalizada no julgamento dos RE´s 955.227 e 949.297, em especial para ceder lugar à heroica providência de restaurar a igualdade entre contribuintes. Como se houvesse colisão ou sopreposição de princípios, o STF acaba por dar um penoso recado à sociedade: nem toda dúvida acerca da constitucionalidade de tributos terá fim com o trânsito em julgado de uma decisão judicial. Se ela tornar-se contrária a um entendimento da Suprema Corte (o que só o futuro dirá), deixará de produzir efeitos, automaticamente. Os momentos da vida do contribuinte litigante sempre foram dois: o da dúvida e o da certeza, nascida do fim do processo que recebe o selo da coisa julgada. Essa certeza, agora, pode ter data para acabar. Dura somente se o STF assim quiser e, detalhe, até quando quiser. A referida desigualdade entre contribuintes, que o recente entendimento pretende corrigir, pode perdurar por anos, décadas, antes que a pena da Corte resgate o ambiente igualitário.
Isso mesmo. A decisão que trata da incidência de qualquer tributo, e que transita em julgado, somente produz seus naturais efeitos (como quer a Corte) enquanto não se reconhecer o contrário (sob o regime de repercussão geral ou em controle concentrado). Não importa quanto tempo demore, porque o entendimento "maior" (e atual) prevalece. Basta constatar que toda e qualquer decisão atestando a inconstitucionalidade da contribuição, com o amparo da coisa julgada, enterrou, de uma vez por todas, a dúvida quanto à (in) validade do tributo. Em 2007 (em controle concentrado) o STF reconhece o oposto, avalizando a cobrança. As decisões contempladas com a coisa julgada, seja como for, se mantiveram íntegras, mesmo após 2007, porque ainda reconhecidas como inatingíveis.
Mas o STF agora, em 2023, põe essa realidade do avesso, retirando da decisão judicial definitiva que afasta a cobrança do tributo os efeitos que lhe cabem. Seria, então, inválida a contribuição desde sua instituição, para aqueles contribuintes com decisões nesse sentido, transitadas em julgado, e válida somente agora, após o quanto decidido nos RE´s 955.227 e 949.297? Seria, por outro lado, válida apenas a partir de 2007 (também apesar da coisa julgada)? Das respostas a tais indagações surgem consequências importantes, porque, repita-se, até o momento, nenhuma dúvida havia quanto à preservação do quanto decidido com a proteção da coisa julgada.
Não por outra razão, em 2021, certamente animou-se o contribuinte agraciado com decisão proferida pela Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (órgão cujas decisões também são definitivas quando contrárias à Fazenda Pública!) que se amparou na coisa julgada para reconhecer a impossibilidade de cobrança da CSLL e anular definitivamente (para a perplexidade de todos!) auto de infração (proc. 16327.002083/2005-41). É que ali, também, no universo administrativo, a coisa julgada mereceu da Constituição força insuperável. O que fazer agora com tal decisão? Não há mais lançamento e, portanto, a cobrança é impossível. Possível formular-se um novo, que se repute aos fatos geradores contemplados no primeiro auto (1999, 2002, 2003)?? De modo algum. Esse contribuinte merece ser "desigual", se considerado o novel entendimento do STF, ou terá também seu direito, reconhecido judicial e administrativamente, atropelado em nome do pretenso socorro à igualdade? Talvez, a esperada modulação dos efeitos da decisão, que não foi acolhida, amenizasse o duro golpe.
Um olhar no art. 5º, LVI da Constituição causa também surpresa e nos oferece um "paralelo" para reflexão acerca da igualdade na Constituição. Aquele que tem contra si provas do cometimento de crime invalidadas porque obtidas por meios ilícitos, embora contundentes, se coloca fora do alcance da igualdade? Há aqui um valor se soprepondo a outro ou também um limite constitucional objetivo que tem um bem jurídico muito caro a preservar?
É preciso calma (nessa hora) para prosseguir. Calma, cautela, equilíbrio e, porque não, toda criatividade de que pudermos dispor doravante são indispensáveis, já que nem mesmo a elegante e atemporal lição de Barbosa Moreira sobre a coisa julgada, antes consagrada no STF, conta hoje com sua simpatia: "Cortaram-se as pontes, queimaram-se as naves; é impraticável o regresso. Não vai ao extremo bíblico de ameaçar com a transformação em estátua de sal quem pretender olhar para trás; mas adverte-se que nada do que se puder avistar, nessa mirada retrospectiva, será eficazmente utilizável contra a muralha erguida. Foi com tal objetivo que se inventou a coisa julgada material; e, se ela não servir para isso, a rigor nenhuma serventia terá. Subordinar a prevalência da res iudicata, em termos que extravasem do álveo do direito positivo, à justiça da decisão, a ser aferida depois do término do processo, é esvaziar o instituto do seu sentido essencial"(Considerações sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material. Temas de Direito Processual. Saraiva,2007).
*Jayr Viégas Gavaldão Junior é sócio do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra com atuação em Tributário. Membro do Instituto Brasileiro de Estudo do Direito da Energia (IBDE) e diretor da Associação Paulista de Assuntos Tributários (APET). Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Paulista (UNIP) e em Administração de Empresas pela Faculdade de Administração de Empresas de Santos/Fundação Lusíada. Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Possui especialização em Direito Tributário pelo Instituto de Estudos Tributários / Instituto de Direito Tributário da Universidade de São Paulo