Na mídia
Fonte: Estadão
O ano de 2022 se inicia com promessas de debates intensos na área de interface entre a arrecadação estatal e a punição por condutas tipificadas como crime contra a ordem tributária, a exemplo da evasão fiscal.
Que o braço punitivo do Estado pode servir de “acelerador” das cobranças tributárias, isso não é novidade. A evolução de três casos, porém, deve fazer deste um ano paradigmático para as discussões sobre o direito penal- tributário.
Em primeiro lugar, está uma decisão do Supremo Tribunal Federal, datada de dezembro de 2019 e que trouxe muita insegurança jurídica no período de crise causado pela pandemia. Há pouco mais de dois anos, a Corte fixou a tese de que o não-recolhimento do ICMS incidente sobre operações próprias constitui crime tributário, ainda que o contribuinte tenha feito as devidas declarações de imposto.
De acordo com o STF, para a configuração do tipo penal, exige-se dolo, por certo, e “contumácia”, termo este, curiosamente, que não possui definição na legislação penal, nem na legislação tributária de caráter nacional, registrando-se apenas alguns conceitos advindos de legislação estadual e municipal, sem qualquer uniformidade.
Na prática, a decisão logo trouxe insegurança, sobretudo no início da pandemia de COVID19, quando diversas empresas viram seus faturamentos despencarem e, muitas vezes, tiveram que fazer escolhas difíceis, como optar por pagar os tributos devidos em determinado mês ou salário dos seus funcionários.
Em segundo lugar, está a expectativa de uma nova decisão do Supremo, a qual pode abalar um universo não mapeado de processos. Em ação proposta em 2013, a Procuradoria Geral da República (PGR) postula a declaração de inconstitucionalidade do artigo 83 da Lei 9.430/96, com a redação dada pela Lei no 12.350/2010.
O referido dispositivo legal positivou a obrigatoriedade de o Ministério Público aguardar o encerramento definitivo da discussão administrativa quanto à exigência de crédito tributário para que possa, então, dar início aos procedimentos necessários à instauração de processo criminal contra os responsáveis.
No caso concreto, o pedido da PGR teve por objeto crime de apropriação indébita de valor relativo à contribuição previdenciária descontado de funcionários, capitulado no artigo 168-A do Código Penal, tido como de natureza formal, pois prescindiria da averiguação do resultado materialmente verificável para ser consumado. Bastaria, portanto, uma conduta omissiva – a de não repassar os valores retidos aos cofres públicos – para que estivesse consumado o crime.
No entendimento da PGR, a “notificação do lançamento” constituiria instrumento suficiente para que o processo penal fosse instaurado e, de acordo com a petição apresentada ao Supremo, “se já houve a instauração do inquérito ou o oferecimento da denúncia, em sobrevindo a desconstituição do lançamento, haverá o respectivo trancamento” – simples assim, sem se considerar os claros danos morais e materiais sofridos pelo réu-inocente, em notório desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal em âmbito administrativo.
Em terceiro lugar, deverá haver intenso debate sobre a aplicabilidade prática da Portaria no 12.072/2021, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que dispõe justamente sobre a atuação dos seus Procuradores
em casos de Representações Fiscais para Fins Penais (RFFP), no âmbito do Sistema de Recuperação de Créditos instituído pela Portaria PGFN no 32/2019.
De acordo com a nova norma, identificando qualquer indício de crime de ordem tributária, os Procuradores devem fazer a devida notificação à polícia e ao Ministério Público (MP).
Caso o MP opte por arquivar a Representação, a norma prevê que o Procurador poderá recorrer da decisão às instâncias superiores do próprio MP.
Esta possibilidade se baseia em uma alteração recente do Código de Processo Penal (CPP), trazida pelo “Pacote Anticrime”, prevendo que “se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica”.
Essa novidade – o recurso da vítima que se insurge contra o arquivamento de uma investigação – teve sua entrada em vigor suspensa por força de uma decisão do STF, a qual deve ser julgada em março deste ano.
A PGFN, portanto, claramente se considerando “vítima” de crime tributário ou “procuradora” da vítima – o que, por si só, já é questionável – optou por publicar norma materialmente ineficaz (sob pena de desobediência da decisão do STF), conferindo aos procuradores uma orientação bem clara no sentido de se utilizar do braço penal para acelerar a cobrança de tributos e contribuições.
A norma vai além e incentiva os Procuradores a participar do processo penal na condição de “assistentes da acusação”.
Tal função, contudo, é usualmente reservada a vítimas que queiram participar de um processo crime contra seu agressor, tendo sido estendida à Comissão de Valores Mobiliários e ao Banco Central do Brasil unicamente para fins regulatórios e não arrecadatórios.
Não bastasse isso, a norma incentiva os Procuradores a mover ação penal privada substitutiva de ação penal pública caso o Ministério Público não ofereça denúncia derivada de uma RFFP no prazo legal – sob flagrante risco de usurpação de função.
Essas três novidades, impensáveis na década anterior, encontram um terreno fértil para prosperar em 2022.
Apesar da arrecadação recorde em 2021, o retorno da inflação e o esgotamento das margens de investimentos trazidos, tanto pelo inchaço do Estado, quanto pela regra do teto de gastos, fazem com que medidas como essas encontrem um clima político favorável ao fisco, na tentativa de alcançar mais um recorde de arrecadação, sem necessariamente observar os direitos e garantias atribuídos aos seus administrados.
A adoção irrefletida de medidas com viés puramente arrecadatório na esfera penal pode custar caro e aumentar o Risco Brasil, colocando inúmeras empresas em um quadro de grande insegurança jurídica, além de afastar novos investimentos externos, colocando em risco, não apenas as atividades empresariais, como também os seus sócios e administradores.
*Alexandre Herlin é sócio do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, com atuação na área tributária
*Pedro Simões é coordenador da Equipe de Penal Empresarial e Compliance do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra e Diretor Educacional do Instituto de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento do Terrorismo (IPLD)