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Fonte: Estadão
No fim do ano de 2020, a B3 (Brasil, Bolsa, Balcão – Bolsa de Valores Brasileira) divulgou que, pela primeira vez, o número de investidores pessoas físicas havia atingido o impressionante número de 3 milhões, sendo que destes, 2 milhões haviam entrado na Bolsa entre 2019 e 2020.
Parte desse crescimento se deve ao recente processo de democratização de acesso à informação e à jornada de educação financeira que tem trilhado o brasileiro. O interesse sobre o assunto tem sido impulsionado, em grande parte, pela popularização de influenciadores digitais motivados a disseminar conteúdo sobre o mercado financeiro.
Um efeito inesperado desse movimento de entrada de pessoas físicas (movimento recente no Brasil, mas que ocorre há mais tempo em solo americano) aconteceu nas últimas semanas: o curioso caso “GameStop” e a batalha travada entre pequenos investidores – usuários organizados da rede social Reddit – e grandes fundos de Wall Street.
A varejista americana de produtos de videogame viu suas ações dispararem de US$ 19,26 no fim do ano passado para impressionantes US$ 350 após um movimento organizado desses investidores individuais atuando através do que se conhece por movimento “short squeeze”.
Um movimento semelhante tem sido visto no Brasil. Um grupo organizado através do aplicativo Telegram tem atuado de forma semelhante para promover os ativos IRBR3. Logo após a mobilização desses investidores, os papéis da resseguradora saltaram de valor, mesmo apresentando a maior queda do Ibovespa em 2020, com baixa de 76,88%.
Mais do que a análise desse curioso fenômeno do mercado financeiro pós-moderno, que deve ainda apresentar efeitos no decorrer dos meses, é preciso entender: esse movimento organizado pode ser enquadrado como crime de manipulação de mercado, previsto no artigo 27-C da Lei do Mercado de Capitais?
Um dos mais importantes princípios do Direito Penal é chamado “ultima ratio”, uma expressão em latim que significa “último recurso” ou “última razão”. Por constituir a forma mais grave das sanções, a sanção penal deve ser aplicada somente nos casos de maior gravidade e quando as demais esferas do direito são incapazes de proteger o que chamamos de bem jurídico.
No caso do crime do artigo 27-C, Marcelo Costenaro Cavali defende que o mecanismo de formação de preços dos valores mobiliários, aspecto inerente à capacidade funcional alocativa do mercado, é o bem jurídico afetado pelas práticas de manipulação de mercado. Nesse sentido, a conduta que possua idoneidade para alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado, ou seja, que afete o processo regular de formação de preços de valores mobiliários – ou que coloca em risco esse processo, pode ser penalizada nos termos previstos pela Lei de Mercado de Capitais.
Assim, a manipulação do mercado pode ser realizada de três formas: i) manipulação baseada em informações, que ocorre através da disseminação de falsas informações ou rumores sobre uma companhia; ii) manipulação baseada em condutas, na qual são realizados atos concretos, via de regra por pessoas internas ao emissor, para forçar o preço dos valores mobiliários na direção desejada; e, c) manipulação baseadas em transações, na qual a manipulação ocorre no próprio mercado, apenas através da compra e venda de valores mobiliários.
A grande questão que se coloca aqui é: a conduta praticada pelos investidores nos casos GameStop e IRBR3 pode ser enquadrada como conduta de manipulação de mercado? E, caso a resposta seja afirmativa, essas condutas podem ser consideradas típicas e, portanto, passíveis de serem punidas nos termos do artigo 27-C? Ou trata-se de um caso de simples aplicação de medidas administrativas pela CVM?
A meu ver, os pequenos investidores auto-organizados, em ambos os casos, praticaram uma forma de manipulação de mercado baseada em transações. Ao forçar a alta dos valores de ações específicas em um esforço conjunto, coordenado e com um propósito em comum, os resultados que sucederam e o movimento que se viu suceder foi obtido de forma inorgânica. Ainda não está claro, no entanto, se a conduta pode ser considerada criminosa nos termos do artigo da Lei de Mercado de Capitais.
Isso ocorre porque existem formas de manipulação de mercado que consubstanciam práticas passíveis de aplicação de mera sanção administrativa. A CVM e a Lei de Mercado de Capitais descrevem a conduta de manipulação da mesma forma e, não tendo sido a distinção feita pelo próprio legislador, a definição do “limite” que irá legitimar a intervenção penal, é relegada ao próprio julgador e/ou regulador.
As condutas que se encontram dentro dos limites de risco aceitáveis pelo mercado financeiro e que não têm condão de atingir o bem jurídico tutelado pelo tipo penal devem ser tutelas tão somente pela esfera administrativa. No entanto, a redação do tipo penal é muito ampla, e a sua leitura, em um primeiro momento, não deixa clara a definição a partir da qual as condutas podem ser consideradas mais graves ou potencialmente lesivas ao bem jurídico, criando “lacunas de punibilidade”.
Por ser um tipo penal relativamente “novo” (o crime de manipulação de mercado foi inserido na Lei de Mercado de Capitais apenas em 2001 e teve sua redação alterada por uma reforma em 2017), a jurisprudência ainda é bastante escassa, tanto no âmbito da CVM, quanto no judiciário. Soma-se a isso o fato de que, no Brasil, não há uma proibição expressa contra a possibilidade de aplicação de sanções penais e administrativas pelo mesmo fato.
Em uma entrevista, o veterano de Wall Street John Chachas declarou que o caso de GameStop representa o “pior tipo de manipulação de mercado”. Os investidores organizados por meio do Reddit, por outro lado, declaram que suas condutas representam apenas um esforço válido realizado em conjunto, dentro do framework regular do mercado. O mesmo acontece com os investidores auto-organizados no caso IRBR3 que afirmam estar realizado mera manobra de short squeeze.
Este debate não é simples e está longe de estar pacificado. Um dos grandes debates, hoje, no estudo do Direito Penal Econômico se dá em torno dos limites da criminalização do delito de manipulação do mercado. E é exatamente esta a grande questão que iremos enfrentar a partir dos episódios de GameStop e IRBR3.
A complexidade do funcionamento do mercado financeiro tem se aprofundado com as novas tecnologias, novas formas de interações sociais e, agora, também com a entrada de novos players. Cabe aos reguladores, legisladores e doutrinadores correrem para compreender e alcançar todas essas inovações, afinal, o mercado não para.
*Natalia Naomi Ikeda, advogada de Penal Econômico e Compliance do Duarte Garcia