Artigos, Na mídia
Fonte: Jota
A assunção, pelo Município, de riscos decorrentes da pandemia, reafirma a vocação de protagonista no desenvolvimento de soluções
A pandemia da Covid-19 coloca em xeque a possibilidade de haver cumprimento integral dos contratos administrativos, além de gerar incertezas quanto à parte que assumirá os riscos decorrentes desse evento imprevisível, de consequências ainda inestimáveis. Nesse contexto, o Município de São Paulo (Município) se antecipou ao restante do País e ofereceu uma resposta: assumirá ao menos parte dos prejuízos, permitindo a manutenção dos contratos e dos pagamentos correspondentes, buscando minimizar o risco de haver paralisação das atividades.
A resposta paulistana veio por meio da Lei nº 17.335, de 27.3.2020 (Lei), regulamentada pelo Decreto nº 59.321, de 01.04.2020 (Decreto), que, além dos contratos administrativos, tratou também de finanças públicas e de algumas medidas adicionais para enfrentar a pandemia, que não são o foco desse material.
No que se refere aos contratos públicos, a Lei permitiu ao Executivo, de forma genérica, adotar medidas excepcionais, visando a “possibilitar o pronto restabelecimento quando a situação de emergência e o estado de calamidade pública findarem”. Há, portanto, discricionariedade na escolha do que possa se revelar necessário para atingir ao fim do contrato, como receber prestações em atraso, relativizar os critérios qualitativos de entrega, flexibilizar o número de colaboradores envolvidos, etc.
Uma das medidas de exceção expressamente previstas na Lei é a manutenção do pagamento da contraprestação prevista nos contratos públicos cuja execução esteja suspensa, parcial ou totalmente, durante a pandemia [1]. Essa possibilidade está condicionada ao compromisso do contratado de “não demissão dos empregados afetos à prestação do serviço no período em que perdurar a medida excepcional”.
Com isso, preservam-se empregos, garante-se a receita do contratado e, ainda, evita-se discussões sobre a existência de álea extraordinária a demandar a recomposição do equilíbrio econômico e financeiro do contrato ou, ainda, a permitir sua resilição [2]. Em outras palavras, o Município assume o risco econômico do imponderável.
A regra vale para os contratos administrativos de prestação de serviços contínuos, entendidos como aqueles que “constituem necessidade permanente da entidade contratante, que se repetem sistemática ou periodicamente, ligados ou não à atividade fim, ainda que prestados de forma intermitente” (art. 2º, parágrafo único).
A definição é ainda mais ampla do que aquela de “serviços essenciais” que consta da legislação federal e estadual, de modo que seu conceito variará de acordo com o propósito de cada unidade contratante. Nos termos do Decreto, a regra é aplicável aos contratos de gestão e às demais parcerias firmadas pelas entidades públicas (art. 11 do Decreto).
Ao adotar essa previsão, a Lei fomenta uma discussão importante, sobre quem deve assumir os riscos decorrentes de eventos imprevisíveis, como a pandemia, em contratos administrativos. Nas relações para fornecimento de bens ou serviços, riscos dessa natureza são alocados ao Poder Público por expressa previsão legal [3], razão pela qual essa controvérsia usualmente se manifesta em contratos de concessão, cuja regra é que os riscos atrelados à atividade estejam a cargo do concessionário, salvo aqueles assumidos pela Administração na respectiva matriz de riscos.
Ocorre que, em muitos contratos, sequer há matriz de riscos estabelecendo uma clara divisão daquilo que está a cargo de cada uma das partes, permitindo a leitura de que todos os riscos deveriam ser suportados pelos particulares. Na prática, a Lei inverte essa lógica, ao menos na vigência da excepcionalidade causada pela pandemia, suspendendo tacitamente a eficácia dos dispositivos de outras normas em contrário – o que explica a opção pela lei e não por decretos.
Para além desses elementos, merece destaque também a previsão voltada ao setor de transporte coletivo urbano: o art. 7º da Lei autoriza o Executivo municipal a conceder subvenções econômicas aos concessionários por até 4 meses, visando a evitar a demissão dos trabalhadores. Do ponto de vista substantivo, a medida se justifica. Isso porque as restrições de circulação de pessoas provocam queda brusca de demanda, impactando negativamente a receita esperada e, portanto, alterando a equação econômica e financeira do contrato.
Merece destaque, contudo, o mecanismo escolhido: optou-se pela subvenção em vez de alterar diretamente a matriz de riscos dos contratos. Trata-se de escolha inteligente, dado que evita possíveis questionamentos acerca da constitucionalidade da medida (dado que o contrato é ato jurídico perfeito) e, ao mesmo tempo, previne possíveis pleitos de reequilíbrio calcados na frustração da expectativa de demanda (e de receita) ao neutralizar parte de seus efeitos [4].
É preciso, contudo, esclarecer que, uma vez superado o período de calamidade, as medidas adotadas cessarão, as disposições contratuais retomam a normalidade e, com isso, a repartição de riscos voltará a ser regida pela matriz originalmente pactuada, caso haja. A Lei é omissa a respeito de um possível dever de prestar contas ao Município, mas é de se esperar que ela possa existir em algum momento, seja motivada pela própria Administração ou por órgãos de controle, como o Ministério Público ou o Tribunal de Contas do Município.
Isso impõe desafios em duas perspectivas. Do lado do gestor, há um relevante ônus argumentativo, com a necessidade de indicar as razões de fato e de direito que demonstrem a adequação de cada medida aos casos concretos e suas consequências práticas, considerando também as outras passíveis de adoção nesse exame – por mais sucinto que possa ser. Caberá ao gestor, assim, promover uma análise consequencialista, à luz do art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (LINDB), sempre com os olhos postos na alternativa mais vantajosa à Administração.
Do ponto de vista das empresas contratadas, faz-se necessário o diligente registro e formalização de todas as despesas e perdas associadas à execução dos contratos, bem como da extensão de possíveis elevações de custo em razão das medidas excepcionais adotadas para o enfrentamento da crise, para que seja possível justificar possíveis pleitos de recomposição econômica e financeira para além das medidas da Lei. Comunicações formais sobre essas circunstâncias, demonstrando a boa-fé e a lealdade contratual, também contribuem para negociações mais frutíferas no futuro.
A Lei vem em boa hora, uma vez que proporciona segurança jurídica aos gestores públicos, aos concessionários e, sobretudo, aos usuários de serviços públicos. E isso sem prescindir da necessidade de se demonstrar a fundamentação econômica e jurídica de cada uma das medidas que são por ela autorizadas.
A assunção, pelo Município, de riscos decorrentes da imprevisível pandemia da Covid-19, reafirma a vocação de São Paulo de protagonista no desenvolvimento de soluções que ofereçam segurança aos investidores e permitam, em maior escala, a realização dos direitos fundamentais subjacentes a cada contrato público.
Oxalá outras cidades brasileiras sigam esse mesmo bom exemplo.
————————————————-
[1] Essa possibilidade não compreende despesas diretas e indiretas que, em função da paralisação, deixarem de ser verificadas.
[2] Vale destacar que o §4º do art. 3º também prevê que a unidade contratante também poderá condicionar a manutenção dos pagamentos a outras condições, estabelecidas discricionariamente.
[3] Art. 65, II, “d”, da Lei nº 8.666/1993.
[4] Tendo em vista tratar-se de um instrumento extracontratual, é indispensável acompanhar a edição de outros atos normativos que tratem do assunto e as recomendações dos órgãos de controle sobre o tema.
MARCELA DE OLIVEIRA SANTOS – Advogada de Direito Público no Duarte Garcia, Serra Netto e Terra. Mestra em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Diretora Administrativa do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE).
HENRIQUE LAGO DA SILVEIRA – Advogado em Direito Público e Regulatório na Lobo de Rizzo Advogados. Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP).