Na mídia
Fonte: O Estado de S.Paulo
Como punir uma empresa que comete um crime?
A pergunta engana – parece fácil de responder. Mas as opções existentes têm se mostrado pouco eficientes. No contexto da Operação Lava Jato, foram recuperados R$ 11,5 bilhões com os acordos firmados e outros R$ 2 bilhões devem se somar a esse valor nos próximos anos. Toda essa quantia, contudo, ainda não será capaz de recuperar o rombo causado na Petrobrás.
Por outro lado, as medidas tiveram um efeito devastador no segmento das empreiteiras. Os processos, as investigações, e todo o entorno da Operação abalaram o setor e contribuíram para agravar a crise econômica no país. Tudo indica que os maiores afetados, porém, estão entre os 600 mil demitidos das empresas envolvidas na Lava Jato.
Mais recentemente, lamentamos a tragédia de Brumadinho – apenas três anos após o caso de Mariana. Por trás dos dois episódios, uma mesma empresa, a Vale. Algumas notícias repercutiram que os bloqueios judiciais de cerca de R$11,8 bilhões do caixa da empresa são praticamente equivalentes ao lucro líquido apurado pela companhia entre janeiro e setembro de 2018.
De fato, não existe relação entre indenização e lucro na legislação brasileira, nem entre multa e lucro, mas essa ausência de relação deixa um gosto amargo na boca. Afinal, as multas arrasam a base salarial; os proprietários continuam com a empresa em suas mãos; e – como no caso da Vale – às vezes nem mesmo a diretoria é dispensada, em que pese os dizeres de vários manuais de governança corporativa. O sistema de multas disponível na legislação brasileira, além de moroso, não consegue quebrar as inúmeras barreiras de proteção ao capital. E o caso da Vale ilustra isso bem.
A Samarco era uma joint venture, figura que assume, via de regra, a forma de uma sociedade anônima, reunindo dois ou mais investidores em um esforço comum. Uma das vantagens das formas reguladas pela lei das sociedades anônimas é que ela trabalha a partir da limitação da responsabilidade – elemento essencial do direito societário. No caso da Samarco, a limitação foi tão funcional que seus efeitos se estenderam para além da esfera jurídica: não apenas a Vale ainda não foi juridicamente responsabilizada pela tragédia de Mariana, como também o branding da JV serviu para afastar o evento do nome da campeã nacional.
A estratégia foi ainda mais vantajosa para a BHP, parceria da Vale na Samarco, que somente em 2018 passou a responder a uma ação coletiva proposta em Liverpool em favor das vítimas de Mariana, em valor superior a 5 bilhões de libras. Sua imagem, porém, passou um tanto quanto ilesa e, no Brasil, poucos devem associar Mariana à multinacional anglo-australiana. O sistema que pune o crime empresarial, pois, leva a dois problemas.
De um lado, como na Operação Lava Jato, há uma série de prisões cuja eficácia jamais se comprovará, enquanto as multas se mostram incapazes de ressarcir o dano causado. Via reversa, a exposição midiática, os custos judiciais e contratuais de passar por uma Operação desse porte levam a demissões em massa que deixam um rastro de sangue na economia.
Por outro lado, como na dobradinha das barragens, há morosidade no judiciário para apurar responsabilidades individuais, bem como para cobrar os valores de indenização das vítimas e de seus familiares e dos danos causados à natureza e à coletividade. Ademais, a diretoria da empresa permanece inabalável e, os acionistas, incólumes.
O real problema sobre como punir empresas, portanto, está em enfrentar as estratégias de direito societário, as quais geram camadas e mais camadas que blindam o capital – tornando-o anônimo – com as ferramentas do direito penal. Ocorre que nosso direito penal não foi feito para punir empresas, e ainda não sabe lidar com essa nova realidade. Não se trata apenas de um problema de Lei – afinal, a Lei de Crimes ambientais permite a punição de pessoas jurídicas desde 1998. Trata-se de uma questão de modelo.
Tudo o que conhecemos por direito penal, por punição, foi desenvolvido para encarcerar pessoas que matam, que roubam, que estupram. O modelo atual é incapaz de lidar com empresas que, a cada três anos, deixam milhões de metros cúbicos de lama tóxica vazar de suas barragens de “contenção”. Seria preciso reinventar a punição para os casos em que faz mais sentido punir a empresa preferencialmente aos indivíduos. Na maior parte dos casos, a responsabilidade individual em crimes dessa envergadura é de dificílima apreciação. As camadas jurídicas e operacionais entre a chefia e as barragens de minério são complicadores que precisam ser levados a sério para que o processo penal não se torne apenas uma caça às bruxas.
Em crimes cuja materialidade seja incontestável, como nos diversos casos da Lava Jato ou em tragédias ambientais, surge uma proposta que vem ganhando peso : quando não for possível identificar com precisão os indivíduos responsáveis pelos crimes já materializados, a própria empresa deve responder criminalmente. E digo a empresa, não apenas a pessoa jurídica, pois esta é uma figura abstrata que pouco nos comunica. Empresas empregam, empresas constroem, empresas destroem, empresas matam. Pessoas jurídicas ficam nos cartórios de registro. Empresas são centros autônomos de imputação – ou, em linguajar mais simples, empresas são capazes de responder por seus atos, inclusive os criminosos.
Limitar a punição às multas é infértil. Empresas não são necessariamente boas ou más, e não devem ser punidas visando a uma expiação de culpa. Esse tipo de demanda apenas levaria à destruição das empresas, as quais, por outro lado, também são empregadoras, geradoras de tecnologia, riqueza e uma série de outras “boas ações”. Para evitar a sedução das multas sem teto (e das prisões muito midiáticas e pouco transformadoras), o que deve ser visado pela criminalização de empresas não é apenas um fato criminoso (um evento isolado), mas um projeto criminoso. A ideia de projeto é conhecida dos que trabalham no meio empresarial, é um conceito elementar de administração de processos e de portfólios em companhias de vários portes. Um projeto é um esforço temporal visando a um produto, um serviço ou outro resultado, para o público interno ou externo à empresa. Companhias pagam caro por profissionais com boa capacidade de gerir projetos: eles precisam determinar suas fases, os processos eficientes, os feedbacks, a conexão com outros projetos, etc.
Juristas pensam a criminalidade empresarial ignorando essa realidade – fazem abstrações a partir da ideia tradicional do crime (a conduta-homicídio), incomparável à complexidade empresarial que antecedeu às tragédias ambientais ou aos grandes esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro de escala internacional. O que presenciamos, de fato, foi a condução e manutenção de projetos criminosos que, na soma dos freios e contrapesos da atividade produtiva, não apenas deixaram de impedir os eventos criminosos (as propinas, os rompimentos, etc.), como também se aproveitaram desses eventos criminosos para atingir lucros impensáveis em operações regulares. Havendo, portanto, prova da materialidade de um crime grave, o que deveria ser feito para punir a empresa?
O senso comum sobre governança corporativa prega exatamente o contrário do que vimos nos casos que uso aqui como exemplos: a troca imediata da equipe de administração, prescindindo de apuração de responsabilidade, para que o choque de gestão seja imediatamente comunicado e gere mudança de postura na empresa. Diretoria nova, empresa nova – é um adágio que se deduz dos manuais de governança. Mas o que esse adágio revela é que os proprietários, os acionistas, são poupados das consequências desastrosas de sua administração – afinal, cabe aos proprietários com a maior parcela do capital eleger os administradores e vistoriar sua atuação na empresa.
O controle é o elemento central da empresa e é também o mais protegido pelas estruturas de limitação de responsabilidade, que chamo de capital-anonimato. Quando essa situação de blindagem do controle se encontra com o modelo punitivo tradicional do direito penal, o da conduta-homicídio, o resultado é um jogo de gato e rato que leva, no máximo, à punição de alguns dirigentes e a demissões em massa.
A proposta, portanto, é que em casos gravíssimos em que se comprova a existência e manutenção de um projeto criminoso, o controle da empresa seja alienado. Com isso, coloca-se a empresa à venda compulsória no mercado. O valor arrecadado com a compra deve ser dirigido primeiramente para arcar com os custos do dano causado pelo projeto criminoso que deu causa à venda e, apenas depois, deve-se considerar pagar os acionistas que tiveram sua propriedade alienada à força.
Essa proposta não se confunde com uma estatização. A ideia é vender a empresa no mercado, para que os choques de gestão sejam feitos ainda que a contragosto, poupando a empresa e seus empregados, porém, de arcar com multas excessivas. A alienação também pode ser parcial; pode implicar uma diluição do controle, respeitando-se o direito de preferência dos demais acionistas, se a situação fática for favorável a isso (caso os demais acionistas não tivessem conhecimento, ingerência sobre o projeto, etc.).
A alienação do controle em bloco é medida radical, a ser tomada em casos de maior envergadura e que não pode suprimir outras medidas organizacionais aplicáveis como sanções a crimes menores – como, por exemplo, uma reorganização compulsória dos órgãos da administração, implementação de compliance sob vigilância externa, restrições à distribuição de dividendos, etc.
Uma proposta desse porte exigiria uma lei nova. Mas não apenas uma lei – um modelo novo. Por isso, entendo necessário que a análise dos grandes crimes empresariais que ocupam nossos noticiários nos últimos anos instale um debate público amplo onde esta ideia possa ser apreciada em minúcias que não cabem aqui. É apenas uma ideia, uma proposta, de fato, mas que instalaria um regime para combater ao mesmo tempo a criminalidade de empresa e os abusos de poder de controle decorrentes do excesso de concentração econômica.