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30 de agosto de 2018
Fonte: Blog Fausto Macedo - Estadão
O Superior Tribuna de Justiça (STJ) julgou, no fim de agosto, o Habeas Corpus 399.109, numa decisão que uniformizou o entendimento entre as Turmas de que o não pagamento de ICMS declarado constitui crime de apropriação indébita, com pena de seis meses a dois anos, além de multa.
A decisão é controversa. A falta de pagamento de ICMS que tenha sido devidamente declarado não é crime tributário, nos moldes da Lei Federal n.º 8.137/1990 (Lei de Crimes Tributários). Inexiste, nesses casos, o dolo, elemento subjetivo indispensável nesse tipo de delito.
Para driblar essa premissa jurídica, a solução dada pelos Ministros que deram o voto vencedor foi criar um pout pourri de crimes, mesclando o ilícito da Lei de Crimes Tributários com a apropriação indébita, um crime patrimonial, primo-irmão do furto ou do estelionato.
O racional dos votos vencedores no STJ foi o seguinte: o valor do ICMS está embutido no preço da mercadoria e é repassado ao consumidor final. Portanto, se o comerciante declara o tributo, mas não o recolhe, ele estaria se apropriando ilicitamente de um valor que era de sua responsabilidade “gerir”, ou seja, declarar e recolher ao Estado.
A inspiração, cremos, veio de outro crime: a apropriação indébita previdenciária. Nessa modalidade, o patrão que deixa de repassar à previdência as contribuições retidas dos trabalhadores é também acusado de se apropriar indevidamente de valores sob seu gerenciamento.
Não obstante, existe uma diferença crucial entre a apropriação indébita tributária “criada” pelo STJ na decisão ora comentada e a apropriação indébita previdenciária, prevista no Código Penal.
Nesta última, o empresário que deixa de repassar ao INSS o valor retido de seus trabalhadores não está apenas deixando de alimentar os cofres públicos: está diretamente minando a aposentadoria de seus funcionários.
A falta de recolhimento das obrigações previdenciárias passíveis de retenção pelo empresário é um crime que pode trazer resultados desastrosos para vítimas concretas e reais – os trabalhadores.
Além deles, o Estado também é prejudicado. Neste caso em específico não se trata apenas de um não pagamento, e sim de uma conduta fraudulenta que atinge o planejamento previdenciário de um grupo de pessoas.
Situação diversa, por exemplo, se dá quando a empresa deixa de recolher a sua própria quota-parte previdenciária (20% do valor da folha de trabalho), desde que faça a devida declaração, elidindo, dessa forma, o crime previsto no art. 337-A, do Código Penal.
Se o empresário deixar de recolher esse valor, mas o declarar, não comete apropriação indébita previdenciária – trata-se apenas de um inadimplemento fiscal, passível de cobrança pelos eficazes meios colocados à disposição do ente tributário.
Os trabalhadores não serão vitimados e a disputa deve se dar sob a lei fiscal. Apenas com a prova de dolo é que se pode falar em crime tributário.
Afirmar que o não recolhimento de um tributo declarado constitui crime de apropriação indébita cria um problema de ordem comportamental. Se o comerciante, ao declarar o imposto, estiver correndo risco criminal, ele passa a ter um grande estímulo para não declarar o fato gerador do tributo.
Ou seja, não conseguindo honrar a obrigação fiscal naquele momento, o empresário passará a ter interesse em não a declarar. Trata-se, na prática, de incentivo às operações informais, sem a elaboração da documentação fiscal adequada, o que representaria um grande retrocesso em termos de justiça tributária.
A interpretação do STJ, além disso, viola o Pacto de San José da Costa Risca, documento declaratório de direitos e garantias fundamentais da Organização dos Estados Americanos, da qual o Brasil é signatário. Isso porque o Pacto veda prisão por dívidas, em seu artigo 7º, item 7.
A partir do momento em que o STJ permite que o devedor fiscal confesso seja visto como um criminoso, a corte reinaugura a figura da prisão do “depositário infiel” (no caso, o responsável pelo ICMS não recolhido), afrontando princípios clássicos do direito penal, como a fragmentariedade e a ideia de que a força penal deve ser sempre o último recurso, nunca o primeiro.
É preciso reafirmar, face a esse entendimento, que crime tributário não é qualquer inadimplemento, mas tão somente a redução ou supressão de tributo que resulta de uma atividade dolosamente engendrada para esse fim.
*Pedro Simões e Roberto Junqueira de Souza Ribeiro são, respectivamente, advogado e sócio do escritório Duarte Garcia