Na mídia
Após a Operação Lava Jato, as empresas tentam se ajustar a boas práticas de governança e essa movimentação é acompanhada pela sociedade civil
06 Julho 2018
O Brasil ainda tem um importante caminho a trilhar até que a cultura das boas práticas de governança faça parte, de fato, da realidade das empresas, apesar do aprimoramento de uma série de regras e normas que compõem os programas de compliance das empresas nos últimos anos – sobretudo após o marco da Operação Lava Jato e outros escândalos envolvendo grandes companhias.
Por ora, o processo está em construção e precisa do alinhamento de governo, empresas e sociedade civil para ser bem-sucedido. Esse foi o tema discutido por autoridades, executivos e especialistas reunidos no Fórum Estadão Compliance, realizado na quarta-feira, em São Paulo.
No discurso de abertura do encontro, o ministro da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, disse que os temas “podem mudar a realidade brasileira” e que o poder público tem trabalhado para isso. “A nossa atuação está sempre pautada em detecção de casos de corrupção, sanção desses casos e em mecanismo preventivos.”
Para o sócio da Deloitte, Ronaldo Fragoso, um dos palestrantes, os desdobramentos da Lava Jato foram essenciais no processo de mudança de percepção sobre o assunto. “De fato, houve uma mudança de cultura nessa pós-Lava Jato, agora as empresas têm uma preocupação muito maior e fizeram as adequações necessárias. Mas ainda há um espaço para melhoria, estamos passando por um processo de transformação muito positivo”, afirmou.
Fragoso avalia que ainda é cedo para se ter certeza se as organizações realmente estão mudando a percepção sobre as boas práticas e o combate à corrupção ou se não se trata apenas de uma “febre” pós-Lava Jato.
Evolução. Rafael Mendes Gomes, diretor de Governança e Conformidade da Petrobrás – alvo central da Lava Jato –, também vê de maneira positiva o modo como as empresas se comportam hoje em relação ao compliance, incluindo a estatal. “O impacto não foi só de responsabilização, mas de educação da comunidade empresarial sobre a importância da adoção de programas de integridade.” Ele pontua também o avanço na legislação brasileira para apertar o cerco à corrupção. “Tivemos a modificação da lei de lavagem de dinheiro, a regulamentação da Lei Anticorrupção e, mais recentemente, a nova lei das estatais”, afirma.
Reynaldo Goto, o diretor de compliance da Siemens, percebe um sentimento geral da sociedade de que as coisas estão mudando, mas “ainda não mudaram”. A Siemens, envolvida no escândalo de pagamento de propina para ganhar mercado em diversos países, levou anos para se recuperar. “Eu não trabalho hoje para ter o melhor programa de compliance, mas para ter um mercado livre de corrupção. O departamento de compliance não é responsável pela ética da empresa.”
Um outro ponto positivo, de acordo com Gomes, da Petrobrás, é o fato de que o processo de mudança de cultura das organizações também está passando pelo compartilhamento das lições aprendidas. “Estamos vendo a proliferação de eventos, seminários, congressos, cursos voltados para o assunto. Antes, tudo isso era uma novidade, mas vimos o nascimento de uma nova carreira na última década. Isso é muito positivo”, comenta.
Sociedade civil. Caio Magri, diretor presidente do Instituto Ethos, afirma que a sociedade tem a oportunidade de não só assistir a essa mudança de cultura, mas de participar de modo ativo, como fez na elaboração da Lei da Ficha Limpa. “Como exemplo, temos a iniciativa Unidos Contra a Corrupção, que propõe novas medidas contra a corrupção. Ela junta diversas organizações da sociedade civil e apartidárias, como o Instituto Ethos, a Transparência Internacional e o Instituto Cidade Democrática.”
Uma premissa para o diálogo com a sociedade, observam os palestrantes, é a transparência da máquina pública. “Temos tentado propiciar uma transparência maior sobre o que acontece no governo, o que é essencial para que a sociedade tenha um papel fiscalizador”, observa o diretor de promoção da integridade e cooperação internacional do Ministério da Transparência e CGU, Renato Capanema. “A gente precisa ter um arcabouço de soluções que podem vir da academia e da sociedade civil, para a melhora das políticas públicas.”
Nesse contexto, o advogado e professor de Direito da Universidade de São Paulo Pierpaolo Bottini destaca o papel das universidades. “Professores e alunos precisam participar, dar parecer em projeto de lei. Se a universidade, sobretudo a pública, não tiver diálogo com o Congresso, para que ela serve?”, questiona.
Apesar dos esforços no aprimoramento do compliance no Brasil, ainda é preciso avançar na aplicação das regras que visam a boas práticas, tanto na esfera pública quanto privada. Essa é a avaliação de especialistas ouvidos pelo Estado.
O cenário atual é de desequilíbrio, com mais avanços estruturais do que internalização das regras. Essa é a análise do professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e sócio-fundador da Direzione Consultoria Alexandre Di Miceli. “Ainda investimos demais no formalismo e pouco na cultura ética, na boa liderança, na autorregulação. Esses elementos precisam andar de mãos dadas para que o País avance de fato em termos de compliance.”
Para ele, o foco das empresas não deve ser na criação de inúmeras regras, pois elas sozinhas não são capazes de combater atos ilícitos, mas na efetividade daquelas que já existem. “É preciso fazer valer, priorizar essa prática e monitorar sua eficácia ao longo do tempo. Se não for assim, tudo fica no papel.”
Pedro Simões, sócio do Duarte Garcia Advogados, costuma chamar essa prática de “compliance do dia a dia”, algo que precisa ser incentivado dentro das empresas. “É fácil criar um código, colocar no site e dizer que a companhia tem essas normas. Na hora de mostrar ao investidor ou regulador está tudo ali, preenchendo o ‘check-list’, mas vemos que a prática ainda é deficitária”, conta. Ele indica a ausência de análise de riscos e de treinamentos em todos os níveis hierárquicos como algumas das principais falhas das companhias.
Essa ideia do “check-list”, uma lista de obrigações que precisa ser preenchida em caso de eventuais fiscalizações ou questionamentos, é recorrente, aponta Alexandre Di Miceli. “Até hoje a maioria das empresas ainda enxerga o compliance como um conjunto de itens para preencher e exibir”, lamenta.
Demanda. Sylvia Urquiza e Carolina Fonti, sócias do Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados, têm acompanhado de perto a movimentação das empresas que buscam trilhar o caminho entre a ausência de um sólido programa de compliance e a plena aplicação dessas normas. Para as advogadas, esse é um mercado cada vez mais aquecido. “Infelizmente é uma minoria que está preocupada com o assunto, mas aquelas que nos procuram é justamente para reverter a situação porque tiveram algum problema. Então, há conscientização e, por isso, vejo o cenário com otimismo”, afirma Sylvia, que também preside o Instituto Compliance Brasil.
Um engano recorrente nesse processo é acreditar que um conjunto de boas práticas está restrito apenas às grandes companhias. “É comum clientes acharem que só as gigantes devem se atentar ao compliance. Mas não importa o tamanho da empresa, é preciso criar esse sistema e encontrar caminhos de aplicá-lo, o que nem sempre é simples”, diz Carolina.
Desafios. Outro ponto crítico para a evolução do compliance no Brasil está na coordenação entre os diferentes órgãos envolvidos em casos de corrupção, como Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU) e Ministério Público Federal (MPF). É comum que cada um deles analise de maneira distinta os casos sob sua responsabilidade, criando impasses. “Acontece de CGU e AGU fecharam um acordo de colaboração, mas o MPF não concordar com os termos. Isso dificulta todo o processo”, exemplifica o sócio do Peixoto & Cury Advogados José Ricardo de Bastos Martins. “Com mais parceria entre órgãos reguladores, empresas e a sociedade saem ganhando.”
Essa preocupação é compartilhada por Sylvia, do Instituto Compliance Brasil. “Para que o compliance seja efetivo, a empresa precisa ter segurança jurídica para levar o caso às autoridades. Se o poder público não dialoga com o setor privado pode acabar inviabilizando a solução dos problemas.”